É preciso criar condições adequadas de informação e discussão para que pessoas comuns reflitam conjuntamente sobre temas complexos. Esse é o pressuposto que uniu pesquisadores ao redor do mundo em um experimento global que tentará integrar pessoas leigas em debates científicos com profundas implicações morais. O tema escolhido para o projeto foi o uso da edição genética, técnica que permite a alteração de trechos específicos do DNA de organismos para vários fins. As ideias que alicerçam o experimento foram publicadas dia 17 de setembro na Revista Science.
Responsáveis por organizar o braço brasileiro do projeto Global Citizen Deliberation on Genome Editing, os professores da UFMG Ricardo Fabrino Mendonça, do Departamento de Ciência Política, e Yurij Castelfranchi, do Departamento de Sociologia, fazem parte de um amplo grupo formado por profissionais de áreas diversas. São 22 instituições, pertencentes a dez países, que contribuirão para abarcar as necessidades de cada continente com seus aspectos únicos.
“Estamos falando de questões que afetam o planeta e a humanidade. Temas complexos não são balizados por fronteiras nacionais. Eles requerem a ponderação coletiva sobre os rumos do mundo. Justamente por isso, é importante fomentar possibilidades de participação para que pessoas de diversos continentes possam pensar conjuntamente sobre o futuro”, salienta Ricardo Fabrino. Embora haja uma tradição de inovações participativas semelhantes ao experimento proposto no artigo, que remontam aos Estados Unidos e à Europa dos anos 1970, o projeto é único pelo escopo e amplitude transnacional.
Como explicam no artigo, os especialistas estão se mobilizando para organizar Assembleias de Cidadãos e, em seguida, uma Assembleia Global de Cidadãos. A ideia é que a colaboração dos cidadãos seja particularmente importante para considerar os aspectos éticos e sociais das técnicas científicas emergentes. Os eventos locais ocorreriam entre o fim de 2020 e o início de 2021, mas com a pandemia o projeto precisará ajustar o cronograma a diferentes contextos. Até o momento, a assembleia global está prevista para algum ponto entre o fim de 2021 e abril de 2022.
Participarão 110 pessoas ao longo de cinco dias, em seis línguas, conforme detalha Fabrino. “Essas pessoas integrarão fóruns mais amplos com todos os participantes, sessões informativas e discussões em dez grupos. As pessoas vão refletirem conjuntamente sobre riscos, implicações, potenciais, necessidades e cenários”.
Os integrantes da Assembleia Global derivarão das nacionais que, por sua vez, serão formadas levando em conta diversidade e aleatoriedade. “Não se visa a uma amostra absolutamente representativa das opiniões já existentes sobre o tema (até porque, é um tema pouco discutido), mas à composição de uma amostra diversa que permita a cidadãos leigos, com diferentes características e backgrounds, abordar um tema com implicações profundas”, complementa o professor.
Por que discutir ciência?
Segundo Yurij Castelfranchi, integrar os cidadãos de todo o mundo no debate de temas considerados complexos é fundamental por três razões. “Estamos vivendo em democracia, o que significa que o povo tem poder. Em particular o poder de contribuir com as decisões sobre como viver em conjunto. E hoje nossas democracias são técnico-científicas, porque são democracias que funcionam e se modificam através da ciência e da tecnologia. Quase nenhuma decisão política importante está totalmente externa a esse território atualmente”, explica.
Por isso, como define o professor, a primeira razão do experimento é criar uma cidadania científica. Se todos os debates políticos importantes são atravessados por dados e hipóteses baseadas na ciência e na tecnologia, e se é necessário decidir sobre temas relevantes para toda a população e para a democracia, como fontes de energia, alimentos, mudanças climáticas e vacinas, é fundamental que as pessoas comuns se apropriem dos assuntos e se tornem cidadãos científicos.
“Pode parecer utópico e demagógico, mas se você pensar bem as pessoas já estão fazendo isso, já estão tomando decisões sobre suas vidas ou políticas que afetam todo mundo. As pessoas decidem o que fazer com transgênicos, com vacinas e com seu consumo em geral todo dia, em seus papéis como pais, eleitores e etc. Então já estão sendo cidadãos científicos tendo ou não conhecimento. Mas agora precisamos urgentemente construir uma cidadania mais formada, qualificada, com instrumentos para essa discussão comum”, avalia.
Para Castelfranchi, que é também um dos idealizadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), o segundo motivo para experimentos como esse fica evidente diante da pandemia de covid-19, que destacou a gravidade da catástrofe da infodemia, da pós-verdade, da desinformação e das teorias da conspiração.
“Muitos cientistas, políticos e jornalistas estão dizendo ‘precisamos levar a ciência para as pessoas, fazer com que elas entendam, trazer uma boa informação contra a desinformação’. Só que isso se faz há décadas e temos muitas evidências empíricas que mostram que a divulgação científica tradicional é insuficiente para construir a cidadania científica. Hoje sabemos, melhor do que nunca, que é importante engajar as pessoas em processos de participação real na ciência. Conhecer ela de perto é a melhor vacina contra as fake news, porque cria confiança”.
O último motivo apontado por Castelfranchi é a importância de pensar como pode funcionar a democracia hoje. “O outro experimento, de tentar fazer funcionar a democracia sem que as pessoas participem, já foi feito e se chama tecnocracia. As decisões eram tomadas a portas fechadas, apenas com especialistas da área e os políticos. E ela fracassou miseravelmente e deu lugar a esse clima de desconfiança, de polarização brutal”, ressalta. “Ela entrou em crise a partir de grandes desastres, como o Chernobyl e a epidemia da vaca louca, que levaram a uma desconfiança gigantesca da população com a política e com a ciência em vários países” O experimento da deliberação coletiva, portanto, seria uma forma de reavaliar o próprio funcionamento democrático.
Edição genética
O tema escolhido para o experimento foi definido por suas profundas implicações sociais. A técnica da edição genética pode permitir, por exemplo, modificar mosquitos para eliminar a transmissão de enfermidades, criar plantas mais resistentes ou mesmo alterar gerações futuras de seres humanos. Contudo, são muitas as controvérsias, incluindo aquelas relativas a riscos desses avanços científicos. Podem haver casos de insetos transmissores de doenças que sofreram mutação acidental, plantações esterilizadas e doenças resistentes a novos tratamentos.
“É um tema incrivelmente crucial para o futuro imediato da humanidade. É uma realidade dos próximos anos e que afeta não só a natureza humana, mas nossos alimentos, como faremos agricultura, gestão de epidemias, e outros assuntos. É fundamental e incrivelmente pouco conhecido. É pouco coberto pela mídia, pouco discutido publicamente. Então é urgente e quase invisível. Por isso foi escolhido”, afirma Castelfranchi.
Para o coordenador do projeto, professor John Dryzek, do Centre for Deliberative Democracy and Global Governance da University of Canberra (Austrália), a promessa, os perigos e as armadilhas desta tecnologia emergente são tão profundos que as implicações de como e por que ela é praticada não devem ser deixadas para os especialistas. “Eles devem ser examinados não apenas por aqueles no campo, mas pelo público em geral: professores, encanadores, açougueiros, padeiros e fabricantes de velas”, defende.
Autores: John S. Dryzek, Dianne Nicol, Simon Niemeyer, Sonya Pemberton, Nicole Curato, André Bächtiger, Philip Batterham, Bjørn Bedsted, Simon Burall, Michael Burgess, Gaetan Burgio, Yurij Castelfranchi, Hervé Chneiweiss, George Church, Merlin Crossley, Jantina de Vries, Mahmud Farooque, Marit Hammond, Baogang He, Ricardo Mendonça, Jennifer Merchant, Anna Middleton, John E. J. Rasko, Ine Van Hoyweghen, Antoine Vergne
Publicação: Science, 17 set. 2020.