Um trauma coletivo como o vivenciado atualmente tem a força de reconfigurar a economia psíquica de um sujeito ou apenas fornece material para os sonhos? As pessoas estão sonhando mais ou sentindo maior necessidade de compartilhar os sonhos devido ao isolamento? Essas são algumas das perguntas que um grupo da UFMG, junto à Universidade de São Paulo (USP) e à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), está tentando responder. Os pesquisadores estão recolhendo no Instagram relatos de sonhos que ocorreram durante a quarentena. Posteriormente as narrativas serão analisadas do ponto de vista psicanalítico. Espera-se encontrar sentidos sobre os efeitos do mal-estar atual.
“O sonho é um laboratório em que a mente trabalha, elabora, sem as censuras da vida consciente, o material experimentado pelos sujeitos. Então nossos medos, nossas angústias, desejos, frustrações, etc. são encenados, como se fossem projetados numa tela de cinema, ou em várias”, explica o coordenador da pesquisa na UFMG, professor Gilson Iannini, do Departamento de Psicologia. Segundo o especialista, nos sonhos o aparelho psíquico se abre para elaborar o que não compreendemos, e por isso eles parecem conferir algum sentido à realidade, mesmo uma tão surreal quanto a da pandemia. O essencial do estudo dos sonhos é entender as associações que eles permitem fazer.
Foi com isso em mente que, diante da percepção de um aumento significativo do interesse geral das pessoas com relação aos sonhos durante o isolamento social – surgimento de relatos, obras de arte sobre e pesquisas diversas postadas em redes sociais – o pesquisador decidiu tentar compreender o que os indivíduos estariam vivenciando atualmente em seu sono. A pesquisa foi iniciada junto aos alunos de um curso na Pós-Graduação da UFMG sobre o livro A intepretação dos sonhos, de Sigmund Freud. Posteriormente Iannini integrou seu estudo a trabalhos que vinham sendo desenvolvidos paralelamente na USP e na UFGRS.
Desde o ano passado, um grupo de psicanalistas da USP estava estudando a oniropolítica, um esforço de pensar uma política informada pela psicanálise. Esse grupo começou a olhar para a política contemporânea a partir da lógica dos sonhos, considerando as limitações do paradigma cognitivo. Já o grupo da UFGRS estudava os sonhos como uma estratégia de acessar a narrativa de indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis, como os adolescentes que lutam pela vida. Com a união das três linhas de pesquisa foi possível traçar entendimentos comuns para focar em contribuições sociais para o contexto pandêmico mundial.
“O pressuposto é que a concepção de sujeito para a psicanálise nunca se confundiu com a noção de um indivíduo fechado sobre si mesma. Em nossa perspectiva, o sujeito da psicanálise sempre se situou na fronteira tênue entre a psicologia individual e a psicologia social. Não por acaso, o sonho funciona como uma espécie de radar capaz, às vezes, de apreender aquilo que fica meio não-dito em nossa experiência social compartilhada”, aponta Gilson Iannini.
Captando sonhos
O estudo tem como objetivo conhecer os sonhos da população em geral, articulando o material de narrativas oníricas à possibilidade do trabalho com o despertar. A partir dos relatos colhidos seria possível ajudar a aliviar o sofrimento psíquico e produzir novos sentidos sobre os efeitos do mal-estar atual. Os grupos da USP e da UFRGS estabeleceram um recorte entre trabalhadores da saúde e da educação. Mas na UFMG a pesquisa está se mantendo aberta a todos os grupos, sem definições temáticas.
“A gente está estudando sonhos de qualquer pessoa, independentemente da formação ou área de atuação. Decidimos compartilhar (com a USP e a UFRGS) ferramentas, métodos, conceitos e materiais, mas manter as especificidades de cada grupo. No nosso caso, a gente oferece, além da narrativa escrita do sonho, a possibilidade, para aqueles que quiserem, de falar com um dos pesquisadores psicanalistas por telefone ou whastapp, para uma escuta mais aprofundada, que pode aliviar um pouco os sofrimentos psíquicos vividos nesse momento”, comenta o docente da UFMG.
A captação dos relatos está sendo feita através das redes sociais. No Instagram os pesquisadores explicam sua proposta e disponibilizam um formulário através do qual os interessados podem narrar seus sonhos e fazer associações de maneira livre. Também é possível deixar um contato para que os especialistas realizem uma escuta individual aprofundada. Todo o processo é anônimo.
Até o momento já estão registrados quase 200 sonhos, dos quais aproximadamente 30 contaram com a escuta individualizada. “Há uma predominância de relatos de mulheres jovens, na faixa de 25 anos, que pode ter a ver com as redes de relacionamento dos próprios pesquisadores”, pondera Iannini. “Seria importante ampliar essa base. Estamos trabalhando nisso”.
Teoria e prática
Como referencial teórico, além da proposta da oniropolítica, que surgiu do professor da USP Christian Dunker, e das considerações de Freud, os grupos utilizam como embasamento fundamental o livro Sonhos no Terceiro Reich, da jornalista alemã judia Charlotte Beradt. A autora coletou, entre 1933 e 1939, mais de 300 sonhos daqueles que vivenciavam o momento histórico da ascensão do nazifascismo, apresentando a luta política travada no espaço íntimo de cada sujeito. Também vem sendo peça chave um estudo da assistente social e psicoterapeuta Martha Crawford, que coletou e publicou cerca de 3.000 sonhos que tinham o presidente americano Donald Trump como personagem.
Enquanto a análise dos relatos atuais ainda não foi iniciada, os pesquisadores partem das conclusões de Beradt e Crawford ao considerarem que muitas das crenças não passam de ficções coletivas, ou de “sonhos que não sabíamos que eram sonhos, porque todo mundo os estava sonhando”, como coloca Iannini. Mas o especialista alerta: “A história das ciências é recheada de exemplos em que o pesquisador procura uma coisa e encontra outra. Começaram a surgir temas que não esperávamos, como a especificidade da escuta on-line. Muitas vezes, o tema da pandemia, da morte, do vírus funciona como um pano de fundo para questões anteriores”.
Ainda não há previsão de conclusão do estudo, porém os grupos vêm mantendo contato com editoras e publicações especializadas. Já existe a ideia de escrever um pequeno livro assim que houver material suficiente, além, é claro, de artigos científicos. Da parte da pesquisa na UFMG, por sua característica mais clínica e longitudinal, os trabalhos devem se desdobrar ao longo de um tempo maior.