Há uma batalha silenciosa no Brasil. Apesar de pouco badalada, ela é polêmica e coloca, no ponto central da discussão, o tratamento da leishmaniose visceral canina, doença transmitida pelo mosquito-palha, que afeta homens e animais – e pode ser fatal nos dois casos. De um lado dessa verdadeira guerra surda estão o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) e os órgãos públicos, que indicam a eutanásia para animais infectados. Do outro, veterinários, especialistas e proprietários de cães, que defendem o tratamento da doença, sem o sacrifício dos animais.

No meio do fogo cruzado da discussão, aparece uma população assustada com o alto índice de animais e humanos infectados pela leishmaniose, proprietários de cães com medo de realizar o tratamento e sofrer retaliações judiciais (além de enfrentar o preconceito da vizinhança) e, é claro, inúmeros bichos sendo sacrificados. A única certeza é a de que tanto os homens quanto os cães são vítimas – e que o grande vilão da história é o chamado mosquito flebótomo (ou palha). De difícil combate, ele se reproduz em locais onde existe abundância de material orgânico, como folhas, frutos, fezes de animais, entulhos e lixo, e se alimenta do sangue de humanos e animais, entre eles; a galinha, o porco e o cavalo. Para agravar ainda mais a situação, a doença também é transmitida de humano para humano. Para isto, basta que o mosquito infecte alguém e pique outra pessoa.

No Brasil, contudo, o cão, e não o mosquito, é tido como o grande problema, e a discussão é justamente sobre o sacrífico dos animais infectados – prática apoiada pelo próprio Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), sob alegação de que, mesmo tratado, o animal continuaria sendo um risco para a sociedade. Em Belo Horizonte, o médico epidemiologista Unaí Tupinambás reforça o argumento. “Os cães são o reservatório para que a infecção se perpetue e, mesmo após o tratamento, continuam sendo fonte de transmissão”, diz. A veterinária Danielle Ferreira Soares, do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da Escola de Veterinária da UFMG, concorda com o CFMV. “Ainda não foi identificada uma droga e um protocolo seguros que impeçam a transmissão do protozoário de um animal tratado para o inseto vetor”, afirma. Em contrapartida, a eutanásia é contestada por especialistas que garantem que a matança de cães não diminui o índice de contágio da leishmaniose. E afirmam que, dos 88 países do mundo onde a doença é endêmica, o Brasil é o único que utiliza a morte dos animais como instrumento de saúde pública. “A leishmaniose visceral tem controle, tem tratamento eficaz e, portanto, não é necessário fazer a eutanásia do animal, exceto em casos específicos. Após o tratamento, o cão deixa de ser um reservatório ativo e, por isso, não é mais um transmissor”, afirma o veterinário Leonardo Maciel, da Clínica Veterinária Animal Center.

Precursor do tratamento da leishmaniose visceral canina na capital, há 20 anos, o médico estuda a enfermidade – e faz afirmações assustadoras. “Belo Horizonte está infestada pelo mosquito, e pesquisas mostram que cerca de 30% da população tem o parasita vivo em seu organismo sem se desenvolver”, diz. Dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA) mostram que, dos 93 casos ocorridos em 2012 em pessoas, 13 resultaram em mortes. “É muito provável que, daqui a alguns anos, o número de pessoas infectadas seja maior do que animais, considerando que os seres humanos vivem muito mais. Definitivamente, o problema da leishmaniose não é o cão, e sim o mosquito”, afirma Leonardo. Outro especialista no assunto é o veterinário Vítor Márcio Ribeiro, da Clínica Veterinária Santo Agostinho. Em maio deste ano, ele participou do 5º Congresso Mundial de Leishmaniose, que aconteceu em Porto de Galinhas (PE), e garante: “O grande debate do evento, feito por profissionais de diversas áreas da saúde, foi por que o Brasil opta pela eutanásia, e não pelo tratamento dos animais infectados, já que essa estratégia não diminui o índice da doença. Ao contrário, a leishmaniose visceral tem matado mais do que a dengue em Belo Horizonte”, diz.

Diante de tantas controvérsias, em janeiro deste ano, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) negou vigência a portaria do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) que não permite o tratamento dos cães infectados com medicamento humano – nem importados. O acórdão veio em resposta à ação movida pela Organização Não Governamental (ONG) Abrigo dos Bichos, do Mato Grosso do Sul (MGS). “Esses medicamentos não estão disponíveis no país. E não podem ser importados por não serem registrados no MAPA. Portanto, a portaria, por si só, é totalmente contraditória”, explica o advogado Arildo Carneiro Junior, da ACJ Advocacia e Consultoria Jurídica. “Com esse entendimento do tribunal, a efetividade da portaria ficou ameaçada e pode vir a ser revogada ao final do julgamento. No entanto, o tratamento pode ser feito seguramente através de autorização judicial, já que há precedentes”, explica.

Os proprietários de cães comemoram a decisão e torcem para que seja definitiva. “A doença é um tabu que precisa ser quebrado. Se é para combater algo, vamos combater a causa”, diz a empresária Márcia Resende Carvalho, de 49 anos, que em 2003 comprou uma briga com o poder público para poder tratar o poodle Nicolau. “Lutei muito para que ele não fosse sacrificado e consegui. Ele viveu bem por muitos anos até falecer por outros motivos”. Hoje, a empresária tem oito cães, dos quais três fizeram tratamento contra a leishmaniose: o Juca, mestiço de 16 anos, a Mel, poodle de 2 anos, e o Joãozinho, pinscher de 4 anos. “Mesmo sendo idoso, o Juca respondeu muito bem ao tratamento”.

O veterinário Marcelo Jácome também descobriu que Tody, seu poodle de 12 anos, foi picado pelo mosquito. Não pensou duas vezes: “Apesar da idade, com um mês de tratamento ele já era outro cachorro. Por isso, digo que todos têm direito à vida, inclusive os animais, que são parte integrante de nossas famílias”. Segundo o veterinário Leonardo Maciel, a campanha feita pelo poder público incentivando a eutanásia dos cães contaminados como forma de controlar a endemia surtiu efeito contrário. “O tiro saiu pela culatra. A campanha foi totalmente ineficaz e provocou pânico na população. Hoje, Belo Horizonte é uma das cidades que mais sofrem com a doença no país, isso porque inúmeros animais foram abandonados nas ruas, sendo contaminados e se tornando transmissores, e ao mesmo tempo se reproduzindo”. Como o vetor da doença permanece presente nos ambientes não dedetizados, os novos cães adquiridos para suprir a falta dos que foram perdidos, também são contaminados e consequentemente sacrificados ou abandonados. “É uma verdadeira bola de neve. O índice de abandono, principalmente nas periferias da cidade, cresceu absurdamente. Alguns cães são descartados sem nem mesmo ter a doença”, afirma Daniela Schuchter, da ONG Cão Partilhe.Pesquisa realizada pelo laboratório de epidemiologia da UFMG em 2011 mostrou que o número de animais infectados na capital pode ser 55% superior ao divulgado pela Secretaria Municipal de Saúde (1.812 casos positivos para 52.449 amostras colhidas este ano). Isso porque os métodos utilizados pela universidade são mais precisos. O que gera dúvidas quanto aos resultados apresentados pelo Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). “Tive quatro cadelas recolhidas pelo centro em 2011 sob a alegação de que eram positivas para a leishmaniose. Recorri à Justiça, contestei os resultados e fiz exames específicos como PCR de medula, gânglio, linfonodos e imuno-histoquímico de pele. Todos deram negativo”, conta Franklin Oliveira, do Núcleo Fauna de Defesa Animal . Por isso, a orientação dos especialistas é de que, ao ser abordado pela Zoonoses, o proprietário exija realizar o exame por conta própria, em clínica veterinária da sua confiança. “Caso o exame seja positivo, o dono ainda pode ter a chance de apresentar a contraprova – novo laudo médico – e até mesmo, se for o caso, começar o tratamento com autorização judicial. Já que no CCZ todos os animais positivos para leishmaniose são sacrificados”, diz o advogado Arildo. A informação é confirmada por Vanessa Fiúza, técnica da Gerência de Controle de Zoonoses. “Seguimos as normas técnicas do Ministério da Saúde de acordo com o Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral, realizando a eutanásia dos animais soropositivos recolhidos pelo centro”.

Para a veterinária Ana Augusta de Sousa, do Intensivet Núcleo de Medicina Veterinária Avançada, a leishmaniose é uma questão de saúde pública, e a solução para o controle da endemia em Belo Horizonte e região metropolitana é uma política efetiva de saneamento básico e investimento em políticas sociais. “Tem de existir uma união entre o poder público e a população para se criar uma nova consciência sobre o meio ambiente, recolhendo o lixo e lhe dando uma destinação adequada”. A falta de informação é outro agravante, e quase levou a costureira Oneide Maria Gomes Bahia, 45 anos, a perder o Catatau, fox paulistinha de 4 anos. “Não sabia que tinha a opção de tratá-lo, e agradeço muito por ter ido a um veterinário que não indicou a eutanásia. Antes ele nem andava, hoje é o mais alegre e brincalhão de todos os meus cães. Jamais me perdoaria se o tivesse sacrificado”.

Fique por dentro e previna-se

Leishmaniose – também conhecida como calazar, a contaminação em seres humanos e animais ocorre através da picada da fêmea do mosquito Lutzomyia longipalpis, mais conhecido como mosquito-palha ou birigui

Sintomas no ser humano – febre prolongada, perda de peso, falta de apetite e aumento do fígado e baço. Se não tratada a tempo, a leishmaniose visceral tem alto índice de mortalidade em pacientes imunodeficientes portadores de doenças crônicas

Sintomas no cão – lesões de pele, perda de peso, descamações, crescimento exagerado das unhas e dificuldade de locomoção. No estágio avançado, o mal atinge fígado, baço e rins, levando o animal ao óbito

Prevenção da doença

Fazer a retirada de qualquer tipo de material orgânico como folhas, fezes de animais, entulhos e lixo, onde o mosquito possa se reproduzir. A borrifação química é fundamental em áreas endêmicas

Prevenção nos cães

Uso de repelentes, coleira própria contra a leishmaniose, vacina específica, higienização do animal e do ambiente

Vacina

A vacina Leishmune, aliada a outros métodos preventivos, reduz a chance de contaminação do animal e enfraquece o protozoário em cães já contaminados, diminuindo a chance de transmissão

Tratamento

Apesar de polêmico, é indicado por alguns especialistas. O custo médio do tratamento é de R$ 800, variando de acordo com o peso do animal. Inclui sessões de quimioterapia, feita por meio de medicação venal aplicada através de soro, e medicação oral. Exige o comprometimento do proprietário em seguir as orientações veterinárias à risca, com realização de checape periódico e manutenção de alimentação específica com baixo teor de proteína

Fontes: especialistas consultados

LINK: http://pataspraquetequero.wordpress.com/2013/07/02/leishmaniose-toda-a-verdade-por-tras-da-matanca-de-caes/

Danielle Ferreira de Magalhães Soares é professora do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da Escola de Veterinária da UFMG.