Se fosse seguir o roteiro tradicional do desenvolvimento acadêmico, Rudolf Huebner deveria estar trabalhando, por exemplo, em uma indústria de máquinas pesadas ou algo parecido. Afinal, sua graduação, mestrado e doutorado foram feitos, todos, na engenharia mecânica. Mas, a realidade não é bem assim.

Rudolf é coordenador do Laboratório de Bioengenharia da Universidade Federal de Minas Gerais Minas Gerais (original name) Minas Gerais (Labbio). Lá, coordena uma equipe de professores e estudantes que desenvolve equipamentos e processos que ajudam a melhorar a vida de quem tem problemas de saúde. O Labbio faz próteses de narizes e orelhas em impressoras 3D; faz órteses que ajudam pessoas que tiveram, por exemplo, derrame, a recuperar parte de seus movimentos.

No Covid-19, o Labbio está desenvolvendo uma tecnologia de esterilização do ar em ambientes que podem estar contaminados. Rudolf é um crítico da departamentalização do conhecimento em áreas estanques. Para ele, estamos ainda no início da interação entre a engenharia e, por exemplo, a medicina.
 
Ao mesmo tempo, para Rudolf, o universo que se abre para a bioengenharia é inimaginável, especialmente com o advento da internet 5.0, “o céu é o limite”, afirma Rudof.
 
De que maneira a engenharia pode ser útil à medicina e vice-versa?
 
Esse é um paradigma a ser quebrado. No nosso modelo de graduação, enxergamos conhecimentos estanques. Enxergamos o direito, a medicina, a engenharia, cada qual isoladamente em sua área de conhecimento, e que, aparentemente, não conversam uma com a outra. Esquecemos que muito do desenvolvimento tecnológico da medicina é oriundo da interseção da medicina com a engenharia.
 
O profissional de saúde tem suas limitações naturais. Então, ele tem que pedir ajuda a outras áreas do conhecimento. Por exemplo: no desenvolvimento de válvulas cardíacas, os médicos conseguiram chegar a um certo ponto. A partir daí, para avançar, tiveram que ter a ajuda da engenharia e de outras áreas do conhecimento, sem as quais as válvulas cardíacas não seriam realidade.
 
É preciso quebrar esse tabu também entre os profissionais tanto de uma área quanto de outra. E isso é muito difícil. É importante o médico conversar com o engenheiro, que também deve conversar com o fisioterapeuta e descobrir que demandas ele pode levar para o mundo da engenharia. É importante as pessoas saberem que soluções de ponta muitas vezes vêm através da interseção de processos.
 
Veja por exemplo, a interação entre a odontologia e a engenharia. Dentro de um simples implante dentário há muito da engenharia. Há o pino, há o sistema de fixação da coroa no pino. Há muita mecânica fina envolvida. E apenas para citar um equipamento da atualidade: os respiradores. Há muita tecnologia embarcada nos respiradores. O aparelho vai buscar os dados vitais do paciente e, a partir daí, definir como ele será utilizado. A interação entre as diversas áreas do conhecimento é uma combinação muito fértil e o Brasil é um país que tem totais condições de usufruir disso, pois tem um sistema de saúde muito capilarizado, principalmente no interior.
 
A engenharia biomédica é uma interação muito saudável até para a própria engenharia. É um nicho de trabalho muito fértil, principalmente se pensarmos no engenheiro em termos de carreira futura, no empreendedorismo.
 
O que falta para que avancemos mais?
 
Não avançamos por uma questão de mentalidade. O mineiro é muito conservador. Falta o governo, a indústria, o mundo acadêmico avançarem um pouco mais nessa formação interdisciplinar de forma gradual, aumentando a integração entre universidades e iniciativa privada, fabricantes de equipamentos, hospitais, médicos e enfermeiros. Essa integração ainda não faz parte de nossa rotina.
 
Em que estágio estamos?
 
No Brasil, estamos em um estágio que eu definiria como inicial. A interação entre a engenharia e a medicina ainda não é explorada em sua plenitude. Temos muito potencial. Mas isso acontece muito pouco nos cursos de graduação. Na pós-graduação também. O próprio mercado não entende muito bem o que é o profissional da bioengenharia. Os hospitais também não entendem. O próprio setor de saúde também não. Por isso, trata-se de algo que precisa ser melhor explorado, ser mais estruturado. Mas que tem um potencial muito grande.
 
A UFMG tem essa noção?
 
Sim, tanto que começamos, ano passado, com a criação de um programa de pós-graduação em bioengenharia. O problema é que, com a crise, a Capes sugeriu que suspendêssemos o programa. O que surgiu, então, foi a ideia de termos uma formação transdisciplinar em pós-graduação. Nela, alunos de diferentes programas vão poder cursar diferentes disciplinas em diferentes departamentos. Algo do tipo um aluno de medicina cursar uma disciplina na engenharia e vice-versa. Nós temos um longo caminho a percorrer. Um exemplo disso são os concursos que pregam a superespecialidade, não valorizando, por exemplo, um aluno de engenharia que tem pós-graduação em medicina.
 
Quando surgiu o Labbio?
 
O Labbio surgiu há 20 anos, pelas mãos do professor Marcos Pinotti. Eu fui aluno dele no doutorado. Vi o nascimento do laboratório, que começou na área de engenharia cardiovascular, com o desenvolvimento de válvulas cardíacas e filtros de sangue. Pinotti era muito empreendedor e começou a chamar a atenção de outros profissionais de saúde e, com isso, começou a receber outras demandas. Dessa forma, o Labbio começou a atuar em outras áreas. Fez trabalhos com a medicina veterinária, como Hospital das Clínicas, com o Centro de Treinamento Esportivo da UFMG. Fez também parceria com a Odontologia e a Ciências Biológicas.
 
E como o Labbio atua?
 
Funciona assim. Se uma demanda é apresentada, a gente analisa para ver se temos competência para atuar no que está sendo pedido. Se acharmos que sim, procuramos, em conjunto com profissionais da área de saúde, desenvolver o produto. O nosso desafio é fazer um produto que seja de baixo custo ou seja acessível.
 
Que tecnologias ou equipamentos o senhor apontaria como os mais importantes já desenvolvidos pelo Labbio?
 
Estamos desenvolvendo a órtese de membro superior: braço, antebraço e mão. As pessoas que sofreram, por exemplo, um derrame, costumam perder um pouco a função do braço. Nesse caso, a órtese poderia ser usada no dia a dia e também auxiliar na fisioterapia. Trata-se de um dispositivo que restaura a função do membro.
 
É como uma luva que a pessoa carrega e restaura o movimento, como o de segurar um copo de água. Desenvolvemos também sistemas que, pela análise do movimento da pupila, podem ajudar na indicação de algum problema em nível cerebral. O estudo do padrão de movimentação do olhar pode indicar isso. Outro experimento desenvolvido pelo Labbio é o que consegue matar uma bactéria sem usar antibiótico.
 
Para isso, usamos um sistema que combina iluminação com led, raios laser e uma substância que reage a essa iluminação. Essa reação induz a morte de bactérias. A grande vantagem é que eu consigo fazer isso com um custo muito baixo e de forma segura. Fizemos testes com algumas mães lactantes, que costumam ficar muito machucadas nos mamilos que, com isso, acabam sendo um local muito apropriado para ter uma infecção.
 
O problema é que não podemos tratar essa infecção com antibiótico, porque o antibiótico pode ir para a criança. Fizemos testes e descobrimos que o nível de recuperação das mães é muito alto. Outra tecnologia que o Labbio desenvolveu é a do tapete que permite analisar a marcha de uma pessoa que está fazendo fisioterapia. Trata-se de um tapete sensorizado no qual o paciente caminha e eu identifico o seu padrão de marcha. Depois de uma série de sessões eu consigo avaliar se o trabalho de fisioterapia está correto ou não.
 
Especificamente em relação ao Covid-19, quais são os projetos nos quais o Labbio está envolvido?
 
Estamos trabalhando em várias frentes. Uma está auxiliando no desenvolvimento de tecnologia para a esterilização do ar onde há possibilidade de se ter o Covid-19. Outra frente é a da impressão de máscaras. E tem também a frente que visa o desenvolvimento de respiradores.
 
No caso da contaminação do ar, o que se observa é que as pessoas estão muito preocupadas com a superfície, mas se esquecem que a contaminação pode vir também na forma aerosol, pelo ar, por pequenas partículas de ar que carregam o vírus. A solução par isso é descontaminar o ar. Estamos, nesse projeto, trabalhando com profissionais das Ciências Biológicas e da Belas Artes. Para o hospital da Baleia, desenvolvemos próteses de nariz, olho e até orelhinhas para crianças. Usamos tudo o que temos de tecnologia para produzir. A alegria da criança é algo muito bonito que marca a gente muito.
 
Por que a Belas Artes?
 
Porque eles lidam muito com a conservação de documentos e obras de arte que costumam estar contaminados por fungos. O desenvolvimento dos dispositivos começou na semana passada, já temos protótipos e vamos fazer os primeiros testes. No projeto dos respiradores, estamos trabalhando junto com o Senai e a Fiemg. Estamos conseguindo fazer um pool entre a universidade e a iniciativa privada para disponibilizar nossas competências técnicas.
 
O Covid tem o seu lado ruim. Por outro lado, colocou várias entidades diferentes conversando entre si. Vemos agora uma maior interação entre a universidade, a iniciativa privada e os sistemas de saúde. O Ministério Público também tem nos procurado. Se conseguirmos manter essa interação após o Covid, poderemos colher muitos bons frutos. Há males que vêm para o bem, pois está todo mundo se mobilizando.
 
Que futuro o senhor vislumbra para a bioengenharia?
 
Sem a engenharia, muitos diagnósticos médicos seriam inimagináveis. E isso vai crescer cada vez mais com a internet 5.0. O céu é o limite. A bioengenharia é um mundo fantástico, mas que, para avançar, depende de uma mudança de mentalidade das pessoas, da quebra do paradigma de que médico é médico e engenheiro é engenheiro. Estamos evoluindo bem, mas é um trabalho de formiguinha transformar isso em uma nova cultura. Uma coisa é certa: há espaço para isso. (Material produzido pela SME)
 
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